Cáritas Arquidiocesana de Campinas – Vida que transforma
Por Hebe Rios e Álvaro Jr.
O aumento do número de pessoas em situação de rua em Campinas revela uma realidade tão complexa em causas quanto em consequências. A busca de solução exige um trabalho inter setorial, entre todas as políticas públicas, com iniciativas de instituições que conheçam essa complexidade e tenham competência para enfrentá-la. Nesta reportagem será apresentado o trabalho de uma instituição que oferece caminho concreto para reinserção dessas pessoas, com índice expressivo de resgate da autonomia, entre 70 e 75 por cento. Antes de contar essa história, porém, uma proposta de reflexão.
Em Campinas, estima-se que em torno de mil pessoas estejam expostas à situação de rua
A rua, como território público, é um retrato da diversidade humana que o ocupa. A expressão “morador de rua”, popularmente usada para definir quem ocupa temporariamente calçadas, praças, viadutos e becos do espaço urbano, é adequada? Quem vive perambulando pelo território urbano está em uma situação de passagem, sem ponto fixo. O que falta a essas pessoas é justamente um teto, uma moradia, um lar. Elas estão, portanto, em “situação de rua”. Uma pequena mudança na nomenclatura, revela a possiblidade de mudança de realidade. Uma situação hoje pode não ser a mesma amanhã, e sendo assim, é alimentada a esperança e convicção na capacidade humana de transformação.
Em Campinas, estima-se que em torno de mil pessoas estejam expostas à situação de rua, segundo dados oficiais da Prefeitura Municipal de Campinas, mas este número é maior, quando analisado por quem realiza os atendimentos na rede de assistência, e fruto de problemas sócio econômicos, uso de drogas e questões de ordem pessoal e até mesmo mental, causas muitas vezes complexamente interligadas. Essa realidade é enfrentada por quem se dispõe a acolher essas pessoas, sem julgá-las, afinal, também é responsabilidade pública a falta de acesso a direitos fundamentais, como renda e moradia, que leva muitos a essa condição.
A história da Cáritas Arquidiocesana de Campinas merece ser conhecida porque é um exemplo de sucesso na desafiadora missão de acolher, integrar e promover as pessoas em situação de rua. A entidade atua em parceria com a Secretaria de Assistência Social, priorizando o respeito e o cuidado junto a quem merece a chance de ser resgatado das adversidades, o que tem transformado vidas nesse território urbano também desafiador.
Nesta reportagem, 30 pessoas vão contar a história, que fala sobre elas mesmas e sobre a instituição, cuja trajetória se confunde com suas experiências, crenças e projetos de vida; por meio de depoimentos gravados em vídeo, para que a imagem também revele suas emoções e vivências. É o testemunho pessoal da experiência coletiva, coincidentemente, um para cada ano de atividade ininterrupta da entidade, fato marcado em outubro de 2022, pela gravação de entrevistas com 4 membros da diretoria, inclusive o presidente, padre José Arlindo de Nadai. O ano de 2023 marca outra data importante, os 55 anos de criação do estatuto da entidade.
A possibilidade de conhecer histórias individuais em torno do projeto coletivo, amplia os saberes sobre a Cáritas Arquidiocesana de Campinas, entidade cujo trabalho com pessoas em situação de rua, tem reconhecimento regional, nacional e internacional.
O círculo virtuoso, que alimenta as relações de apoio e cuidado, ganha novo impulso quando encontra uma instituição bem estruturada e fundamentada em valores cristãos de promoção humana. Mostrar a força e eficácia desse trabalho, sustentado pela dedicação, serviço e caridade, é o objetivo das pessoas que se dispuseram a gravar as entrevistas.
Mantidas praticamente na íntegra, as falas de moradores(as), gestores(as), funcionários(as), ex-funcionários(as), colaboradores(as), voluntários(as) e pessoas que passaram pela instituição, narram os fatos, os momentos e principalmente os sentimentos que envolvem e movem a todos nesta causa pelo outro, sem julgamentos. Uma prova de que a vulnerabilidade humana e o apagamento social nunca serão maiores do que o trabalho de pessoas tomadas pelo amor que transforma territórios porque transforma vidas.
Assista o resumo das entrevistas:
POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA EM CAMPINAS
O levantamento mais recente sobre o número de pessoas em situação de rua, em Campinas, foi divulgado em dezembro de 2021 pela prefeitura e aponta o número de 932 pessoas, um aumento de 13% em relação ao ano de 2019.
Pessoa em situação de rua em Campinas
A EMOÇÃO DE QUEM EXPERIMENTA O OLHAR
Os depoimentos a seguir são de moradores e moradoras das 4 casas abrigo assistidas pela Cáritas Arquidiocesana de Campinas – casa de apoio Associação Santa Clara, casa abrigo Santa Dulce, casa abrigo Amigos de São Francisco e casa abrigo Antônio Fernando dos Santos.
As entrevistas foram realizadas em cada uma das casas e comprovam a eficácia da ação de cuidado e acolhimento implementada pela Cáritas e coordenada por 4 mulheres – Angélica Sartori, Delles Rodrigues, Mônica Romão e Gisele Maia, respectivamente.
Durante a realização dessa etapa da reportagem, a emoção dominou os relatos, cheios de exemplos do amor que cada pessoa assistida tem a oportunidade de experimentar, seja pela dedicação incondicional das coordenadoras, funcionários(as) ou pela metodologia aplicada, que não julga e valoriza cada ser humano, visto como sujeito de direitos, necessidades e saberes.
A história de cada entrevistado(a) tem em comum os momentos de instabilidade emocional, psicológica, física ou financeira, que levaram à situação de rua. Os problemas familiares também são frequentes, mas todos(as) são unânimes em dizer que a rua não foi uma escolha e sim a falta dela. Nessa condição, vivenciaram o desprezo de quem se sente superior e desconhece a fraqueza humana, a falta de estrutura pública de assistência e o preconceito generalizado na esfera privada, expresso pela invisibilidade a que são submetidos(as).
Nas casas abrigo, as pessoas encontram uma perspectiva bem diferente e relatam como vivenciam essa oportunidade. Algumas contam como chegaram, como estão agora e as batalhas que ainda enfrentam. Outras ressaltam que os problemas não acabam com mágica, mas com a vontade própria alicerçada em uma política consistente de acolhimento.
As ações da Cáritas Arquidiocesana de Campinas mostram que essas pessoas não são invisíveis, têm muito a dizer e a ensinar. Basta olhar para elas como seres humanos e oferecer uma chance concreta de vida nova. Acompanhe os depoimentos e comprove.
DEPOIMENTOS CASA ABRIGO SANTA DULCE
- Castilio Donati
- Antonio Carlos Gomes
- Roger Absalonsen
- José Carlos Negreiros Paes Landim
DEPOIMENTOS CASA ABRIGO ASSOCIAÇÃO SANTA CLARA
- Bruna de Lima Moreira Santos
- Sandra Aparecida da Silva
DEPOIMENTOS CASA ABRIGO ANTÔNIO FERNANDO DOS SANTOS
- Roberto Gomes do Nascimento
- Daniel Arraes
DEPOIMENTOS CASA ABRIGO AMIGOS DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS
- Samuel Marcelino Batista
- Hermes Simões Pinto
- Jean Vitor Diniz
- Julio Cesar dos Santos
- Alexandre Rosic
- Flavio Luis Neves
- Francisco Leal Batista
VIVENDO A TRANSFORMAÇÃO
Conheça a Cáritas Arquidiocesana de Campinas por meio de quem vive a transformação de pessoas. Os depoimentos a seguir são das coordenadoras e de um ex-coordenador das casas abrigo.
- Angélica Sartori – COODERNADORA CASA ABRIGO ASSOCIAÇÃO SANTA CLARA
Angélica Sartori, 33 anos, coordena a casa abrigo Santa Clara, o primeiro abrigo feminino de Campinas, que hoje recebe mulheres, mães e seus filhos. Assumiu a gestão no período mais crítico da pandemia de Covid 19 e relata os desafios desse momento. Angélica ressalta ainda a metodologia aplicada, que garante acesso a direitos e transforma vidas porque respeita o que ela chama de “ponto de partida de cada mulher”.
A coordenadora se refere ao lugar de cada pessoa no campo social. A realidade de um homem é diferente da realidade de uma mulher, por exemplo, assim como a criança, que vê o mundo sob uma perspectiva própria. Entender as necessidades, expectativas e histórias individuais faz toda a diferença no trabalho e no resultado, segundo ela.
- Delles de Lean Rodrigues de Sousa – COORDENADORA CASA ABRIGO SANTA DULCE
Delles de Lean Rodrigues de Sousa, 29 anos, é coordenadora da casa abrigo Santa Dulce. Criada para acolher as pessoas em situação de rua, apenas durante a pandemia de Covid 19, após dois anos de funcionamento a casa se tornou um abrigo provisório, com regime de permanência diferenciado em relação às outras casas.
A coordenadora explica que atitudes simples, como o direito de escolher um cardápio, dão novo ânimo e elevam a autoestima das pessoas que chegam desestruturadas. Delles vê a Cáritas como o sonho possível de permitir alimento, cama, formação e carinho para que os seus usuários retomem a força e o entusiasmo necessários para reconstruir a própria vida.
- Gisele Maia – COORDENADORA CASA ABRIGO ANTÔNIO FERNANDO DOS SANTOS
Gisele Maia, 43 anos, coordena o abrigo Antônio Fernando dos Santos. Antes dele, havia apenas serviços de atendimento-dia, em Campinas, e não casas estruturadas, para acolher pessoas durante um período maior. O nome é em homenagem ao homem que, em situação de rua, atuava em favor dessa população, buscando um lugar de acolhimento 24 horas. Ele morreu antes de ver o sonho realizado.
Atender as pessoas, na integralidade que elas exigem, é o que norteia o trabalho, segundo Gisele. Uma tarefa que resgata a noção de humanidade e ganha novos contornos quando os usuários deixam o abrigo. “Fora do abrigo eles precisam enfrentar as múltiplas necessidades de quem passou pela situação de rua. O nosso desafio é também prepará-los pra isso”, diz.
- Mônica Tolentino Romão – COORDENADORA CASA ABRIGO AMIGOS DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS
A casa abrigo Amigos de São Francisco de Assis, tem Mônica Tolentino Romão, 44 anos, como coordenadora. É o serviço mais antigo da Cáritas Arquidiocesana de Campinas, que começou com atendimento-dia, em 1995.
Mônica relata vários casos de resgate da autonomia entre os usuários e de que forma eles ressignificam a vida dentro e fora dele. Ela vibra com cada vitória e ressalta que as pessoas precisam conhecer e valorizar o trabalho, pelo seu resultado efetivo. “Precisaria ampliar, ter muito mais casas porque a gente sabe que as pessoas se transformam. As pessoas que julgam sem conhecer perdem a chance de ver que é possível fazer muito e fazer bem feito, com a participação deles, com o protagonismo deles”, afirma.
- Leonardo Duart Bastos – EX-COORDENADOR ABRIGOS SANTA DULCE E ANTÔNIO FERNANDO DOS SANTOS
Leonardo Duart Bastos, 45 anos, coordenou a casa Antônio Fernando dos Santos e o abrigo Santa Dulce, quando este último foi criado no auge da pandemia de Covid 19. Leo, como é conhecido, explica detalhadamente a metodologia aplicada entre os usuários e como se chegou até ela. “Antes de começar, visitamos um abrigo em São Paulo e o que vimos nos mostrou exatamente o que não fazer”, ele lembra.
A experiência levou ao estudo da educação popular de Paulo Freire e aos princípios da Comunicação Não-Violenta, sistematizados pelo psicólogo americano Marshall Rosenberg, inspirado nos trabalhos de resistência não-violenta de Gandhi e Martin Luther King (Comunicação Não-Violenta (CNV): O que é e como praticar (institutocnvb.com.br).
A Justiça Restaurativa é outra aliada na elaboração de estratégias de acolhimento e solução de conflitos. Uma inovação na metodologia, iniciada no abrigo Antônio Fernando dos Santos, e reconhecida internacionalmente, é a implementação do primeiro grupo de Ouvidores de Vozes do Brasil. A iniciativa permite o tratamento humanizado dos problemas de saúde mental dos usuários.
O VOLUNTARIADO FAZ A CÁRITAS
Os depoimentos a seguir são de voluntários e voluntárias da Cáritas Arquidiocesana de Campinas, que fazem ou fizeram parte da área administrativa da entidade, como coordenação, vice-presidência, tesouraria e bazar. Alguns chegaram a ser também funcionários e relatam a experiência do trabalho técnico alinhado à assistência social do município e aos movimentos sociais da Igreja.
Histórias de quem acompanha a Cáritas Campinas desde seu nascimento, que se deu antes mesmo da regulamentação do Sistema Único de Assistência Social. “A Cáritas passa a ligar a ação social à Igreja, aos movimentos sociais da Arquidiocese de Campinas”, diz Rita de Cássia Marchiori, ex vice-presidente, 69 anos, lembrando o período em que as atividades foram retomadas e a Cáritas Campinas passou a ter participação ativa na construção da Política Nacional de Assistência Social.
Marchiori lembra ainda o início da formação da equipe técnica multidisciplinar, com psicólogos, assistentes sociais, profissionais da área administrativa e voluntários, todos engajados no objetivo de ajudar as pessoas, sem criar dependência, trabalhando com amor e fraternidade para transformar vidas.
Sobre o direcionamento do trabalho, a ex-coordenadora geral, Maria José Mamprin, 67 anos, ressalta que cada Cáritas desenvolve um perfil de atuação, de acordo com a realidade em que está inserida. No caso de Campinas, o crescimento desordenado e a realidade urbana levaram ao trabalho com as pessoas em situação de rua, mas não de forma assistencialista e sim a partir da “caridade transformadora e libertadora”, diz Zezé, como é conhecida por todos.
O atual vice-presidente, Ademir Martins, 73 anos, ressalta que tudo em Campinas, na área social e da solidariedade “tem o dedinho da Cáritas”, que ensina a quem trabalha ou é voluntário(a) a ver as pessoas como cidadãos e cidadãs de direitos, ensinando a necessidade de democratizar as oportunidades.
Apesar dos objetivos legítimos e em sintonia com a doutrina cristã, muitas vezes a entidade encontra incompreensão dentro da própria Igreja Católica, como relata um dos voluntários, quando faz a divulgação do trabalho nas paróquias. Para outro, que atuava na área financeira da entidade, fazer alguma coisa por quem precisa é o melhor “lucro”, porque a Cáritas prova que é possível transformar não só a vida de outros, mas a própria vida do voluntário.
Hoje o voluntariado se espalha por vários setores da entidade, desde a diretoria (presidente, vice-presidente, secretário, tesoureiro, conselho fiscal) até projetos, como o bazar, que há 25 anos é coordenado por uma equipe de voluntárias. A inscrição no sistema Nota Fiscal Paulista e a comunicação também contam com trabalho voluntário, que se estende ainda entre os estagiários de psicologia, assistência social, terapia ocupacional e do seminário de pastoral da Igreja Presbiteriana.
- Ademir Martins
- Rita de Cássia Angarten Marchiori
- Maria José Morelli Mamprin
- Jair Mamprin
- Adão José Piva
- Hebe Rios do Carmo
VOLUNTARIADO DE TEREZINHA – “TEMPO DEMAIS PARA LEMBRAR”
Ao olhar o álbum de fotos, a voluntária e diretora da casa abrigo Associação Santa Clara, Terezinha Yasuko Ikeda Shibuta, 78 anos, faz o alerta: – “Mas como eu vou lembrar quando comecei na Cáritas? Faz tanto tempo…é tempo demais para lembrar”. Os 43 anos de voluntariado superam até mesmo o tempo de atividades ininterruptas da Cáritas Arquidiocesana de Campinas, o que explica a ação de Terezinha em favor de pessoas que precisam de ajuda, sejam acolhidas por uma instituição ou não.
Terezinha foi uma das primeiras fisioterapeutas de Campinas e é a única da família paulistana a morar na cidade. O despertar para a ação voluntária começou em 1980, quando ela e o marido participavam do Encontro de Casais com Cristo, uma iniciativa da Igreja Católica. O convite à oração despertou a necessidade da ação, e assim o casal começou a busca por instituições e pessoas que precisassem de apoio.
O encontro com a Cáritas começou por meio da venda de pizzas, cuja renda era revertida para instituições e obras beneficentes. A iniciativa de parcerias pela caridade, a aproximou das assistentes sociais Rita Marchiore e Maria José Mamprin, integrantes da Cáritas Arquidiocesana de Campinas.
Os objetivos pessoais e as ações da entidade, principalmente a partir de 1992, geraram a afinidade necessária para engajar Terezinha na continuidade de obras conjuntas, que mais tarde a elevaram à condição de diretora do abrigo feminino Santa Clara, que acolhe mulheres em situação de vulnerabilidade social e seus filhos.
A voluntária ressalta que o trabalho de todos na Cáritas visa o potencial positivo das pessoas. “Aqui não importa o que se fez ou o que se deixou de fazer. Nas casas se aprende a ter autonomia”, se referindo à metodologia aplicada e ao acompanhamento pós-casa, que orienta a vida fora do abrigo.
Ao descrever o que motiva suas ações em prol do trabalho pela entidade, Terezinha dá um belo e emocionante depoimento sobre o que é o seguimento da doutrina cristã. “É lindo demais ver que Jesus vai capacitando a gente, apesar das limitações. Eu agradeço porque com toda minha dificuldade, a cabeça não foi prejudicada e eu posso trabalhar pelo outro”, diz ela.
Terezinha explica ainda como é a vida no abrigo, os desafios a superar diariamente e a vivência de fé e partilha entre as pessoas desprezadas pela sociedade. Uma forma de torná-las visíveis vem do toque e do abraço, que a fisioterapeuta propaga como uma necessidade constante. “Vocês não fazem ideia como um simples toque, mesmo na ponta dos dedos, pode fazer a diferença”, diz ela num tom de voz sereno e profundo.
O COMEÇO DO TRABALHO CONTÍNUO – A MISSÃO DE PADRE JACINTO
A entrevista com Padre Jacinto Domene Martins, 86 anos, foi feita no Residencial Divina Providência, que abriga freiras e padres idosos, em Vinhedo/SP. A história dele realizou um dos capítulos mais importantes da história da Cáritas Arquidiocesana de Campinas, pois foi o ponto de partida para os 30 anos de trabalho ininterrupto da entidade.
Padre Jacinto é um dos fundadores da Cáritas Arquidiocesana de Campinas
A partir do pedido do padre José Arlindo de Nadai, para que retomasse as atividades da Cáritas, em Campinas, padre Jacinto convidou as freiras Helene Gatien e Genevieve Ouvrard, ambas da Congregação das Irmãs de São Paulo de Chartres, para auxiliá-lo na criação de atividades voltadas para as pessoas em situação de vulnerabilidade social, em uma Campinas que crescia de forma desordenada, avolumando o número de pessoas em situação de rua. Desta forma, a Cáritas Arquidiocesana de Campinas, cujo estatuto é de 1968, foi reavivada em 1992, criando muitas das atividades que realiza até hoje.
Padre Jacinto lembra com satisfação dos momentos que passou junto às irmãs e funcionários da entidade, durante os primeiros anos de reestruturação da Cáritas, e até mesmo quando era chamado de comunista, por quem se incomodava com sua dedicação ao trabalho de promover e acolher as pessoas em situação de rua, criando atividades de geração de emprego e renda.
O trabalho inicial era coordenado por irmã Helene, que segundo padre Jacinto estava mais capacitada do que ele para a função social. Junto dela, além de outras freiras, as assistentes sociais Rita Marchiore e Maria José Mamprin também são lembradas como pioneiras na realização das atividades da Cáritas Campinas.
Padre Jacinto conta ainda que os desafios sempre eram superados com a intercessão Divina. Entre as muitas necessidades dos acolhidos, quando por exemplo, era preciso comprar remédios para uma família pobre, e não havia dinheiro suficiente, ele e irmã Helene se juntavam e começavam a rezar. De repente, sem saber explicar como, o dinheiro aparecia. “Isso não era coisa nossa, isso era coisa de Deus”, diz ele.
Distante das atividades pastorais por problemas de saúde, padre Jacinto ficou feliz com a visita da equipe de reportagem, e ao saber que sua obra hoje está ainda mais viva e atuante, agradeceu e louvou a Deus pela realização pessoal na ação pastoral.
IRMÃ HELENE DÁ INÍCIO AOS PROJETOS SOCIAIS DA CÁRITAS
O sotaque da canadense que está no Brasil há 55 anos, tempo suficiente para se sentir também brasileira, marca o som da fala suave de irmã Helene Gatien, 86 anos, que em 1992 assumiu o desafio de transformar a Cáritas Arquidiocesana de Campinas, até então existente apenas em estatuto, em uma entidade voltada para as causas sociais da região metropolitana de Campinas.
Irmã Helene conta que recebeu o pedido de ajuda na época do padre Jacinto, que segundo Gatien, “trazia a Cáritas em uma caixa de papelão”. Ela se referia ao fato da entidade existir apenas em documentos e práticas, mas sem uma sede. “Com o dedo de Deus em cada situação”, como gosta de ressaltar, irmã Helene assumiu a tarefa de cumprir o objetivo da instituição criada em Roma, para acolher refugiados e vítimas da guerra.
Gatien recebeu do padre José Arlindo de Nadai, o convite para instalar a sede administrativa da Cáritas Arquidiocesana no local que até hoje abriga a entidade, Centro Pastoral Pio XII, à rua Irmã Serafina, 88, bairro Bosque. O novo endereço foi fundamental para a organização das atividades e contratação do corpo técnico, que seria responsável pelo atendimento e acolhida de milhares de pessoas em situação de vulnerabilidade social, a partir dessa estruturação.
As ações sociais práticas, porém, necessitavam de recursos financeiros, e para tanto irmã Helene solicitou ajuda da Arquidiocese de Campinas e entidades católicas internacionais. Outra atitude efetiva nesse sentido foi a criação de um bazar de roupas, que pudesse gerar renda para realização dessas ações. Paralelamente, cresciam as demandas sociais, principalmente entre os catadores de material reciclável.
A ação, junto a essa população, se estruturou de tal forma que deu origem ao Centro de Referência e Cooperativismo, com apoio do poder público e de voluntários. Gatien conta que um desses voluntários era funcionário de uma grande empresa, “e ele deixou o trabalho para se dedicar a nossa causa”, lembra.
Durante as ações de cooperativismo junto aos catadores, muitos deles em situação de rua, a equipe da Cáritas se desperta para o desafio de também acolher essas pessoas. Nesse momento, começa a vocação que se estende até os dias de hoje, com a criação das primeiras casas de acolhimento: a casa Amigos de São Francisco de Assis, em 1995 e a casa de apoio Santa Clara, em 1997.
Neste vídeo, irmã Helene dá detalhes dessa longa história, fala sobre as pessoas que foram fundamentais nos primeiros anos de vida da Cáritas Arquidiocesana de Campinas, além de contar como em todo momento a providência Divina se manifestou pelo caminho.
CÁRITAS – “PRESENÇA AMOROSA DE CRISTO JUNTO AOS POBRES”
Atual presidente da Cáritas Arquidiocesana de Campinas e presente na entidade “desde sempre”, como ele mesmo gosta de dizer, o padre José Arlindo de Nadai, 86 anos, pároco emérito da Paróquia Divino Salvador, ressalta a história da instituição Cáritas no mundo, no Brasil e em Campinas, sob a ótica da prática cristã.
A entrevista gravada para esta reportagem foi realizada em outubro de 2022, quando a Cáritas Arquidiocesana de Campinas consolidava uma nova estrutura para sua quarta casa abrigo (Santa Dulce) inicialmente criada para acolher as pessoas em situação de rua durante o pior período da pandemia do Corona vírus. O ano de 2022 marcou também os 30 anos de atividades ininterruptas da Cáritas Campinas, mas a ligação entre a entidade e padre Nadai, vem desde a criação de seu estatuto, em novembro de 1968, portanto, há 55 anos.
“A Cáritas é a presença amorosa de Cristo junto aos pobres”, diz padre Nadai, citando uma frase que ele atribui ao Papa Francisco, para lembrar como é significativo o trabalho de uma instituição que tem na sua essência o acolhimento, a proteção, a promoção e a reintegração de pessoas em situação de rua e vulnerabilidade social. Uma presença que concretiza o exercício pleno da caridade cristã.
Padre Nadai conta como a Cáritas Arquidiocesana Campinas deu continuidade à vocação de cuidado e acolhimento, por meio da criação de novas casas abrigo, e da gratidão que ele sente pelos funcionários da entidade, que “trabalham e são remunerados por isso, mas também prestam um serviço humanitário, que está acima da questão do ganho financeiro”, ele afirma.
Entre as histórias que vivenciou junto aos moradores dos abrigos, padre Nadai lembra a de um deles no momento da morte. “Ele recebia cuidados de todos do abrigo e quando morreu, o velório estava cheio, porque além das pessoas da Cáritas, a família, que morava fora da cidade, também veio. Ele morreu com dignidade e foi um acontecimento que marcou a todos nós”, diz.
Sobre a vida que pulsa nas casas abrigo, padre Nadai ressalta a gratidão de cada morador e cada moradora pelas pequenas, mas significativas conquistas. Seja por oferecer endereço fixo, oportunidade de trabalho ou acesso a tratamentos de saúde e remédios, a Cáritas Arquidiocesana de Campinas permite a recuperação da autoestima e a esperança, adormecidas pela vulnerabilidade nas ruas.
COORDENADOR GERAL REAFIRMA O PROJETO CÁRITAS – “EXISTE UMA FORMA DIFERENTE DE CUIDAR DAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA”
Com a satisfação de quem conhece os projetos de acolhimento desenvolvidos, o coordenador geral da Cáritas Arquidiocesana de Campinas, Roberto Naiber Willis Torrico, 45 anos, reafirma os resultados positivos da metodologia de trabalho aplicada em cada casa abrigo. Boliviano, Naiber também foi acolhido pela Cáritas na terra natal e depois no Brasil continuou o vínculo com a instituição. Neste vídeo ele conta como foi essa trajetória, faz uma cronologia da fundação das casas abrigo da Cáritas em Campinas e detalha a metodologia aplicada com a participação dos moradores.
O protagonismo, a autonomia e a transparência, pilares do trabalho desenvolvido com cada pessoa em situação de rua, provam, segundo ele, que existe uma forma diferente de cuidado, na maior parte das vezes desconhecida pela sociedade. Os princípios da comunicação não violenta, por exemplo, estimulam a compreensão dos sentimentos a partir da expressão das necessidades. A autonomia é incentivada, tanto emocional quanto financeiramente, sem tutelar o morador e a transparência nas relações humanas cria vínculos, confiança e leva à negociação de conflitos.
Os princípios da Justiça Restaurativa também são aplicados e a punição não é o primeiro recurso quando acontecem problemas. A busca de soluções vem das assembleias dos moradores, que também estabelecem regras e o cuidado coletivo. “Houve casos em que uma briga causaria a expulsão de um morador, mas conversamos, houve pedidos de desculpas e de forma coletiva se decidiu dar mais uma chance pra ele”, explica.
Naiber lembra ainda o legado teórico e prático do educador Paulo Freire, que orienta e inspira a metodologia aplicada nos abrigos. “Ninguém sabe mais do que ninguém, são saberes diferentes”, afirma ao lembrar um dos princípios da educação popular. O coordenador comemora os resultados positivos da metodologia da Cáritas em Campinas, reconhecidos no Brasil e no exterior. Um reconhecimento que não é motivo apenas de satisfação, mas de certeza de que é preciso divulgar os frutos desse trabalho, essencialmente cristão.
AUXÍLIO PARA FORMAÇÃO, EMPREGO E RENDA
A Cáritas Arquidiocesana de Campinas, em parceria com a FEAC, concluiu a Fase I do projeto “Qualifica: Da Cabeça aos Pés” com a formatura da segunda turma dia 28 de junho de 2023.
O projeto permite às participantes, muitas da casa abrigo Santa Clara, a oportunidade de identificar suas demandas de saúde mental, desenvolvendo resiliência, autonomia e capacitação para exercer profissionalmente as funções de manicure e pedicure em espaços de geração de renda. Para a Fase II, além da capacitação profissional nas áreas de manicure e pedicure, foi introduzida a capacitação de design de sobrancelhas.
Formatura Projeto Qualifica Cáritas Campinas, 28/06/2023
O público alvo são mulheres e mães em situação de vulnerabilidade social, atendidas por organizações de acolhimento institucional, que buscam oportunidades no mercado de trabalho formal ou informal.
Outro programa para inserção no mercado de trabalho é o “Mão Amiga”, que teve início em 2016 com 30 vagas. O objetivo é dar formação profissional às pessoas em situação de vulnerabilidade social, para que possam ampliar o convívio e trabalhar.
Os bolsistas são indicados pelos serviços da rede sócio assistencial da Prefeitura de Campinas e passam por um processo seletivo. A bolsa corresponde ao valor de um salário-mínimo por mês e o programa mantém parceria com entidades e empresas, que ofereçam oportunidades de formação e empregabilidade para as pessoas acolhidas pela Cáritas Arquidiocesana de Campinas.
Além desses dois projetos, a Cáritas Campinas, como integrante da rede municipal de assistência, amplia quando necessário, a articulação de vagas de formação e trabalho para os acolhidos, em áreas diversas do mercado, a partir de parcerias com entidades públicas ou privadas.
COMO MANTER A AÇÃO TRANSFORMADORA
Hoje, mensalmente, são mais de 100 pessoas atendidas de forma direta e 300 de forma indireta por meio das casas abrigo, que contam com ampla equipe de profissionais e gastos diversos de manutenção. (http://caritascampinas.org.br/transparencia/).
A prefeitura de Campinas custeia as despesas gerais, mas os encargos trabalhistas com funcionários, despesas extras com manutenção, compra de equipamentos, alimentos, produtos de higiene pessoal e de limpeza são custeados pela Cáritas Arquidiocesana de Campinas.
A entidade busca pessoas físicas e jurídicas como sócias mantenedoras, para dar continuidade ao trabalho e tirar da situação de rua a população que nelas cresce a cada dia.
As alternativas de contribuição incluem a doação mensal, trimestral e anual. Também são aceitos objetos, alimentos (principalmente carne), materiais de limpeza, eletrodomésticos, móveis, e outros itens, de acordo com as necessidades dos abrigos.
A contrapartida para a empresa doadora pode ser feita por meio da veiculação de sua marca nas redes sociais e site da Cáritas Arquidiocesana de Campinas, em posts diários e na autorização para que a empresa divulgue o logo da Cáritas em seu material publicitário, explicitando a parceria de responsabilidade social.
A prestação de contas, sobre as atividades desenvolvidas pela entidade, é feita por meio do portal da transparência no site caritascampinas.org.br , que também divulga mensalmente a carta ao sócio, uma forma de apresentar a metodologia aplicada nos abrigos e as temáticas de ação pastoral. A carta ao sócio é escrita há mais de 15 anos pela analista de sistemas e voluntária Lisiane Ambiel, sendo enviada pelo correio aos sócios e publicada no site (https://caritascampinas.org.br/carta-ao-socio/) .
Pessoas em situação de rua em Campinas – Fotos Álvaro Jr.
LINHA DO TEMPO DA CÁRITAS
A primeira Cáritas foi fundada na Alemanha, em 1897. EM 1951, 13 membros lançaram em Roma as bases para sua expansão internacional. Em 1954 a Caritas Internationalis foi reconhecida ao ajudar as vítimas de inundações na Europa. Em 1956 a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) iniciou a Cáritas Brasileira, com a missão de articular as obras sociais católicas e fazer a distribuição do Programa de Alimentos para a Paz, dos EUA, dentro das ações do Programa Aliança para o Progresso, criado depois da segunda grande guerra.
Em 1966 houve redução no número de donativos e em 1974 o programa acabou, o que provocou o encerramento de algumas entidades. No Brasil, porém, grupos ligados à educação e promoção humana no lugar do assistencialismo, deram continuidade ao trabalho, o que reergueu a Cáritas Brasileira, sob as orientações sociais do Concílio Vaticano II e da Conferência de Medellín.
Em 1980 a metodologia de ação foi renovada a partir das propostas dos Organismos Pastorais Sociais e Comunidades Eclesiais de Base. Em 1990 começaram as iniciativas inovadoras, como as dos Projetos Alternativos Comunitários, e a estruturação das equipes nacional, regionais, diocesanas, além dos grupos de trabalho e gestão, com agentes, funcionários, conselheiros e voluntários, visando a sustentabilidade institucional.
No mundo são 170 organizações-membro, com sede em Roma. No Brasil são 187 entidades-membro, 12 regionais e 5 articulações. A Cáritas Arquidiocesana de Campinas faz parte da Regional São Paulo e compõe a rede de assistência municipal, coordenada pela Secretaria de Assistência Social, Pessoas com Deficiência e Direitos Humanos (SMASDH). Foi criada em 1968, porém, as atividades foram interrompidas em períodos intermitentes. Em 1992, a entidade retomou as atividades de forma contínua. Dia 3 de novembro de 2023 a Cáritas Arquidiocesana de Campinas completa 55 anos de fundação.
Fontes – Cáritas Brasileira, Cáritas Regional São Paulo, Cáritas Arquidiocesana de Campinas
Fachada do prédio onde está localizada a sede da Cáritas Arquidiocesana de Campinas
FICHA TÉCNICA
Produção e reportagem – Hebe Rios e Álvaro Jr.
Apoio de produção – Roberto Naiber Willis Torrico
Imagens e fotos – Álvaro Jr. e João Carmo Costa
Vinhetas e arquivo – Alex Inocêncio
Edição de vídeo – Kleber Casablanca