Mudando comportamentos e realidades – a ação dos “Jovens Mobilizadores”
Reportagem e edição: Hebe Rios
Fotos: Álvaro Júnior
Imagens e edição de imagens: Zeca Perez
Por que ainda hoje, em pleno século 21, a sexualidade humana ainda é motivo de polêmica, censura e imputa a governos e instituições do Brasil o rótulo de propagadores da “ideologia de gênero”? Sem a pretensão de oferecer uma resposta, mas contribuir para o debate, o Gazeta de Barão apresenta nesta reportagem, jovens que encontraram respostas e assim produziram novas perguntas, a partir da convergência entre informação e realidade.
Eles participam do projeto Jovens Mobilizadores/as pelos Direitos Sexuais e Reprodutivos, realizado pela ONG Reprolatina Soluções Inovadoras em Saúde Sexual e Reprodutiva, em parceira com o Programa Juventudes, da Fundação FEAC. Aqui segue o relato das dinâmicas realizadas em uma oficina educativa, facilitada por jovens mobilizadores do projeto, com jovens do Programa de Aprendizagem do CIEE Campinas. Apenas um breve exemplo de um longo trabalho, realizado há 20 anos pela instituição, cuja síntese o site também se propõe reportar.
Vitória e Richard são jovens mobilizadores. Conduzem as orientações e conversas da oficina. Há dois anos no projeto, já estão familiarizados com as ações educativas envolventes e dinâmicas participativas, visando sempre promover educação integral em sexualidade. A oficina começa com uma breve apresentação do projeto por parte do coordenador Rodrigo Correia, que logo faz questão de esclarecer uma dúvida relacionada à saúde sexual. O que antes era chamado de DSTs, doenças sexualmente transmissíveis, hoje são as ISTs, infecções sexualmente transmissíveis, porque nem toda infecção evolui para uma doença.
Os jovens são questionados quanto à estratégia de prevenção mais conhecida, tanto para as ISTs quanto para a gravidez. Muitos respondem que é o uso da camisinha, mas nem todos aprenderam isso na escola. Davi, 18 anos, quebra o constrangimento de alguns colegas, fala que sabe usar a camisinha masculina e demonstra como aprendeu, com o uso de um modelo do órgão genital masculino, oferecido pelo projeto.
Dinâmica 1
Começa então a demonstração do “Penisvaldo” e da “Vaginilda”, modelos pedagógicos dos órgãos genitais masculino e feminino, apelidados assim para quebrar possíveis constrangimentos e principalmente a desinformação. Rodrigo explica que, o uso de modelos mais próximos do real, é para evitar o que pode acontecer sem o auxílio deles, em especial em comunidades mais vulneráveis. “Conhecemos casos em que mulheres engravidaram porque aprenderam a colocar a camisinha em uma banana, ou em um cabo de vassoura. Pela falta de um modelo adequado para explicar como usar corretamente a camisinha, a mulher reproduziu o que aprendeu visualmente na orientação e não usou a camisinha da forma certa”, conta Rodrigo.
Enquanto Davi coloca a camisinha, alguns risos e até palmas. Todos aprendem que o lubrificante presente nela é à base de água, e nunca deve ser usado outro tipo de produto. Ao fim, a pergunta: Ele colocou certo ou errado? A resposta: Errado. Apesar da proclamada experiência no assunto, Davi colocou a camisinha ao contrário. O lado certo é aquele que faz a camisinha desenrolar facilmente no pênis, sem subir de volta. Mesmo assim, Davi é parabenizado pela coragem de se voluntariar.
A explicação continua – A ponta da camisinha serve para guardar o esperma. Se este reservatório gruda no pênis, o esperma fica sem espaço durante a ejaculação e a camisinha pode estourar. Ao colocá-la, é preciso apertar a ponta para o ar sair e assim liberar o reservatório do esperma. Deve ser colocada com o pênis ereto e não se deve tirar a lubrificação, para facilitar a penetração.
A turma ainda tímida não pergunta muito, então a orientação segue com mais algumas informações importantes. É preciso trocar a camisinha a cada ejaculação, nunca usar duas juntas e ver a data de validade. Para saber se está furada, basta apertar a embalagem e ver se tem ar dentro. Não pode ser guardada muito tempo dentro da carteira para não secar, e é preciso ver sempre se a camisinha tem o selo do Inmetro. Camisinhas certificadas, tanto as encontradas nos postos de saúde quanto as da farmácia, são de boa qualidade. A diferença está apenas na embalagem.
O jovem mobilizador Richard chama uma voluntária para explicar como se usa a camisinha feminina, que também previne com eficácia. Todos visualizam como se deve dobrar o anel de dentro da camisinha, para que ela seja introduzida da forma correta na vagina.
“Assim como a masculina, a feminina é bem lubrificada, e oferece maior autonomia à mulher, porque ela pode ser colocada até 8 horas antes da relação sexual. Muitas mulheres, como profissionais do sexo por exemplo, preferem este modelo, para não depender do parceiro querer usar ou não a masculina. Ela também é distribuída gratuitamente nos postos de saúde e pode ser guardada dentro da bolsa”, explicam.
Esclarecem ainda que, há menos de 10 anos no mercado, a camisinha feminina é mais cara do que a camisinha masculina. Enquanto esta custa de R$ 3,00 a R$ 4,00 cada, com 3 unidades por pacote, a feminina custa de R$ 12,00 a R$ 20,00, com 2 unidades.
Os estudantes são questionados se existe uma idade certa para receber orientações sobre sexualidade e prevenção, e após algumas idades mencionadas são orientados que, de acordo com o Ministério da Saúde, a partir dos 10 anos a criança deve receber orientações sobre os cuidados com a higiene, a saúde e o corpo, que está mudando e gera muita curiosidade. “Mas, infelizmente, hoje há meninas de 12, 10 anos que engravidam, o que mostra a necessidade de antecipar a orientação e a prevenção. Outro exemplo é a importância da vacina contra o HPV, que deve ser tomada pelas meninas com idade entre 9 e 14 anos, e os meninos entre 11 e 13 anos”, concluem.
O jovem mobilizador Richard, que lidera parte da dinâmica ao lado de Rodrigo e Vitória, conta que começou no projeto quase de forma forçada, sem muita expectativa. Hoje, não se vê fora dele, e descobriu um aliado no processo de ensino/aprendizagem sobre um assunto tão básico quanto fundamental para a vida de todo jovem.
Dinâmica 2
Uma nova dinâmica é proposta pela jovem mobilizadora Vitória. Depois de explicar que ali nenhuma informação pessoal vai ser explorada, ela propõe que todos imaginem estar em uma festa, e pergunta o que geralmente acontece nela. Algumas respostas surgem como, se divertir, ouvir música, beber, usar drogas, namorar e até ter uma relação sexual. Em seguida, recebem um cartão e são orientados a circular pela sala (festa) para pegar a assinatura de 3 colegas. Depois disso Vitória revela, então, que as assinaturas que cada um tem no seu cartão, correspondem a relações sexuais que tiveram durante a festa, hipoteticamente.
Em seguida, pergunta quem tem um cartão com um X no canto superior. Esta pessoa é convidada a vir na frente do grupo e representa, na dinâmica, uma pessoa que acabou de saber que é soro positiva para o HIV (vírus que provoca a Aids). Esta pessoa lê o nome das 3 que assinaram seu cartão, e elas são convidadas a ficar em pé. Assim acontece sucessivamente, e na medida que cada participante lê os nomes nos cartões, as pessoas vão se levantando, até que ao final todos estão em pé. A conclusão é clara. Todos ali podem ter sido infectados pelo vírus HIV, já que uma pessoa infectada teve relações sexuais (hipotéticas) com outras, sem proteção, que por sua vez também tiveram relações com outras, sem proteção.
Uma nova pergunta é feita ao grupo, pedindo para identificar quem tem a letra C no cartão, significando que apenas esta pessoa se preveniu, usando camisinha nas relações sexuais durante a festa. A conclusão é novamente impactante, revelando a única forma de evitar a transmissão do vírus e a importância de se prevenir em todas as relações sexuais, seja qual for o parceiro/a.
Depois da dinâmica, todos agitados demonstram, ao mesmo tempo, surpresa pela facilidade de exposição a uma infecção tão grave, alívio por saber que ela pode ser prevenida, e assumem a ingenuidade de muitas vezes acreditar que nunca passariam por uma situação assim. Antes de uma nova interação com os jovens, para esclarecer dúvidas, é exibido um vídeo e são apresentadas as 9 ações e estratégias da prevenção combinada utilizadas hoje como referência no gerenciamento de risco às IST/HIV-Aids.
A jovem mobilizadora Vitória faz com que todos participem da dinâmica, não apenas como espectadores, mas como corresponsáveis. Ao fim, é visível o impacto que a metodologia provoca. Para a jovem, é apenas o começo de um processo que não tem fim. Ela conta que depois das dinâmicas, geralmente, os/as adolescentes a procuram para esclarecer dúvidas e dividir angústias. Uma satisfação para ela, que declara ser apaixonada pelo projeto. O mesmo sentimento toma conta dos jovens do CIEE, recém orientados, que fizeram questão de falar ao Gazeta de Barão sobre aquela manhã de aprendizado.
Como tudo começou
Ela é jovem na idade e no compromisso. Nasceu no Distrito de Barão Geraldo, em maio de 1999, época em que os índices de gravidez na adolescência eram alarmantes na região metropolitana de Campinas e no Brasil. Motivada pela realidade e pelos resultados de 25 anos de pesquisas em educação sexual e planejamento familiar, num centro de pesquisas vinculado à Unicamp, a ONG Reprolatina – Soluções Inovadoras em Saúde Sexual e Reprodutiva – foi fundada pela enfermeira obstetra, com mestrado e doutorado em educação pela Unicamp e especialização em educação sexual, Margarita Díaz e Francisco Cabral, psicólogo, especialista em sexualidade humana. “A universidade produzia conhecimento, mas ele não chegava a quem mais precisava! Havia um espaço a ser ocupado e nós ocupamos”, diz Margarita.
A motivação de Margarita para chegar às populações mais vulneráveis, especialmente mulheres e adolescentes, surgiu a partir de um projeto que coordenou para implementar uma metodologia desenvolvida pela OMS: “O enfoque estratégico era a melhoria de políticas e programas de saúde sexual e reprodutiva, que começava com um diagnóstico da situação, e uma das características importantes era a participação comunitária”, diz.
O projeto piloto começou em Santa Bárbara D’Oeste, onde havia um alto índice de adolescentes grávidas, um flagrante da falta de acesso e de atendimento adequado. Foi aplicada, então, a metodologia de ação participativa, e a partir dessa experiência a equipe da Reprolatina desenvolveu um enfoque holístico para o trabalho com adolescentes, que é aplicado até hoje em vários países da América Latina. Ainda segundo Margarita, utilizando uma metodologia educativa, participativa e libertadora, baseada no pensamento de Paulo Freire, foi capacitado um grupo de adolescentes para atuarem como agentes voluntários de saúde.
“O aprendizado tem que ser feito não apenas para o adolescente, mas com o adolescente, democratizando o saber”, ressalta Margarita. Todas as atividades tinham foco em gênero, nos direitos sexuais e reprodutivos, e na transformação social. O trabalho deu tão certo e os resultados foram tão transformadores daquela realidade, com redução no número de casos de gravidez na adolescência, que surgiu a ideia de criar a Reprolatina ,para expandir o trabalho de educação integral sobre a sexualidade nas escolas, além da saúde sexual e reprodutiva nas unidades de saúde. Desta forma, a ONG estaria contribuindo com acordos internacionais sobre a temática, como o Acordo da Conferência de 1994, realizada em Cairo e a IV Conferência Mundial da Mulher, realizada em Pequim em 1995.
“O Brasil é signatário desses acordos e na época liderou as conquistas pelos direitos das mulheres e pelos direitos sexuais e reprodutivos, que incluem o direito de viver a sexualidade sem medo, vergonha, culpa, sob falsas crenças e outros impedimentos à livre expressão dos desejos, e a escolher o/a parceiro/a sexual sem discriminação, com liberdade e autonomia para expressar sua orientação sexual, se assim desejar. Isto significa, que a população LGBTI tem direito de expressar a sua sexualidade. Com relação aos direitos reprodutivos, foi acordado que a mulher tem direito de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de ter filhos, e também tem o direito de receber a informação e acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva de boa qualidade”, afirma.
Depois de outros eventos e acordos, como Cairo + 20, Cairo + 25, vem o consenso de Montevideo, a partir do qual confirma-se o direito e a necessidade de cada um exercer sua sexualidade sem risco, e a importância de reconhecer as/os adolescentes como sujeitos, com direito a receber educação integral em sexualidade. É importante ressaltar, segundo Margarita, que a atuação da ONG, bem como todos os projetos realizados por ela, têm respaldo científico, em um contexto de pesquisa mundial e de acordos internacionais, em que – igualdade de gênero/empoderamento das mulheres – está entre os 17 objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), aprovados por 193 Estados membro da Organização das Nações Unidas em 2015. A proposta é que os 17 objetivos e as 163 metas sejam alcançados até 2030.
“Ao contrário do avanço daqueles anos, hoje o Brasil é um dos países que estão retrocedendo nessa temática e a “ideologia de gênero” é exemplo disso; um termo inventado, que muda o sentido da luta pela igualdade entre homens e mulheres, que é a igualdade de gênero, e coloca a falsa ideia nas pessoas de que por meio da educação sexual se pretende ensinar crianças e adolescentes a serem gays, como se isso fosse algo que se aprende”, diz.
“As mulheres, principalmente desde o início do século passado, lutam por direitos iguais, mas depois de vários avanços e conquistas, grupos conservadores, vinculados a grupos religiosos e movimentos de extrema direita estão questionando esses direitos e nos estão fazendo retroceder. Esses grupos não querem perder o controle que desfrutam há séculos, querem manter o domínio sobre as mulheres, não querem que as mulheres se empoderem, tomem suas próprias decisões e lutem pelos seus direitos”, afirma Margarita.
Ainda de acordo com a idealizadora e hoje presidenta da Reprolatina, esses grupos querem impor a heterossexualidade e fortalecem o machismo, que coloca a mulher em situação de submissão, de inferioridade em relação ao homem. Na opinião deles, a origem dos problemas da família é apenas de responsabilidade da mulher, que passou a trabalhar também fora de casa. “É deles a ideia da escola de princesas, que ensina as meninas a serem ‘boas donas de casa’; a fala que os gays são doentes, desviados, que fazem mal à família e à sociedade e que deveriam se curar. Não reconhecem as outras famílias, com formações homo afetivas e nem a mulher no controle de seu corpo e da sua sexualidade. A consequência disso é a violência contra a mulher e contra a população LGBTI. Isso está na base do discurso contra a liberdade sexual e reprodutiva”, ressalta.
Como chegou a Campinas
Criada para trabalhar com populações vulneráveis na América Latina, a Reprolatina tem atuado em diferentes estados do Brasil. As atividades, em Campinas, começaram em 2007 com um projeto para jovens de diferentes regiões do país, para que atuassem como multiplicadores sobre temas relacionados à sexualidade e direitos sexuais e reprodutivos. Este foi o embrião do projeto realizado hoje em parceria com a Fundação FEAC e iniciado em 2017. “Foi o momento de mudar o olhar sobre a cidade, revisar os dados e indicadores do município com relação à saúde sexual e reprodutiva de adolescentes e jovens, e entender que existem, “pequenas Áfricas” em Campinas; alguns territórios apresentam uma extrema vulnerabilidade social, econômica e cultural”, explica o coordenador de projetos, Rodrigo Correia.
Resultado comprovado
A médica generalista, mestre em saúde coletiva e doutoranda em saúde coletiva pela Unicamp, Lilian Soares Vital Terra, que coordenava na época o Centro de Saúde San Martin, na Vila Olímpia, onde a Reprolatina aplicou um dos projetos, testemunhou o momento relatado por Rodrigo. Lilian conta que percebeu, no atendimento do centro, um número expressivo de gestações concentradas na adolescência e a necessidade de uma ação de prevenção coletiva.
Foi quando acompanhou o trabalho realizado pela Reprolatina. “Eu considerei que era uma questão social grave, porque o corpo da adolescente não está preparado, na maioria das vezes não é um projeto de vida ficar grávida nessa fase”, conta.
Afirma ainda que foi justamente o projeto de vida o ponto trabalhado pela ONG com os jovens. A Reprolatina abordava a educação sexual, não como algo isolado, mas como parte do conhecimento necessário à estruturação de um projeto de vida, estabelecendo prioridades. “Eles argumentavam que antes de pensar em engravidar, havia muito o que conquistar, viver, experimentar, para evitar que o ciclo de gravidez na adolescência continuasse a se repetir de forma inconsequente”, lembra a médica.
Os resultados puderam ser comprovados por Lilian, que percebeu a diminuição nos casos de gravidez na adolescência, flagrante da mudança de comportamento entre jovens do bairro. “Um dia atendi uma menina de 17 anos que já tinha vida sexual ativa e nunca deixava de usar preservativo, sabia o que queria da vida, era segura. Achei surpreendente, porque na maioria dos casos não era assim”, relata.
Sobre os que insistem no termo “ideologia de gênero”, para desqualificar iniciativas de educação em saúde sexual integral e direitos reprodutivos, Lilian lembra que são levados, muitas vezes, pela ingenuidade ou tentativa de fugir da realidade. A médica lembra que hoje, em plena era da informação, com celular e tudo que ele implica, há muitas informações circulando, e a chamada ‘sexualização’ dos jovens vem de muitas fontes, nem sempre preocupadas com saúde e educação.
“Dia desses vi um caso concreto disso. Um menino era muito sexualizado, segundo a mãe. Perguntei de onde ela achava que vinha esse comportamento. Ela respondeu que o menino via muita pornografia no celular do pai. Então, está aí o acesso, quer a escola fale ou não sobre o assunto”, diz Lilian.
A médica lembra também as pesquisas que apontam o fato da maioria dos casos de abuso sexual de crianças e adolescentes acontecer dentro de casa. Não falar sobre o assunto é deixar essa criança ainda mais sujeita a esses abusos. “Porque a família não protege mais a criança, o que protege é informação, conhecimento, saber os limites do toque, do carinho, do próprio corpo, dos próprios incômodos”, ressalta.
Lilian continua: “Não tem como fugir da realidade negando a realidade, tem que ter informação compatível com desenvolvimento neurológico, físico, emocional. É o melhor que fazemos por crianças e adolescentes, e a escola é capaz de passar essa informação. Um grupo como a Reprolatina, que trabalha com isso há tantos anos, é perfeitamente capaz de passar, e a forma que eles trabalham com isso, com apoio entre pares, adolescentes conversando com adolescentes, tem muito mais condição de levar o conteúdo com uma linguagem acessível, mais interessante pra esses adolescentes do que fazem os professores, os profissionais de saúde ou os próprios pais”.
A médica conclui dizendo que tudo isso justifica a parceria com unidades de saúde e escolas de Campinas. Para ela foi um marco, com resultados de fato comprovados na diminuição de casos de gravidez na adolescência no território da Vila Olímpia.
“Minha filha hoje é mais feliz“
Ana Caroline Soares de Menezes, de 17 anos, que atuou durante quase dois anos como jovem mobilizadora na Escola Maria de Lourdes Campo Freire, no bairro Sta. Terezinha, em Campinas, é mais uma personagem da história sobre a ação de jovens que mudam comportamentos e realidades. A jovem fez o curso da Reprolatina em setembro de 2017. Estudava de manhã e atuava no projeto principalmente com os estudantes do período da tarde. Daniela Teixeira, 38 anos, mãe de Ana Caroline, é quem faz questão de contar o que a ação da filha no projeto Jovens Mobilizadores provocou na vida da própria jovem e em seu círculo de relacionamento.
Daniela não cansa de elogiar o projeto. Faz questão de dizer que, como mãe, no início teve receio de que a sexualidade fosse muito estimulada. Mas, conhecendo melhor o projeto, sua visão mudou. “Não induz à sexualidade, eu acho que ensina a trabalhar a sexualidade. Eu mesma como mãe tinha esse medo, achei que minha filha, sabendo fazer, ia querer fazer, mas não. Vi que não é isso, eles abrem a cabeça de meninos e meninas sobre a forma correta das coisas acontecerem, no tempo certo”, relata.
A mãe conta ainda que outros jovens, colegas da filha, fazem até hoje perguntas, enviam dúvidas, mesmo depois de Ana Caroline ter deixado o projeto, em função do trabalho. Muitos desses jovens não conseguiam esclarecer as dúvidas com os pais. “O adolescente que quer fazer, vai fazer, ensinando ou não, mas tendo orientação de como fazer do jeito certo é diferente, e é nesse momento que a gente vê as dúvidas de meninos e meninas. Quando ela participava do projeto você precisava ver as dúvidas deles e delas. Faziam perguntas anônimas, com caixinhas cheias de perguntas”, explica Daniela.
Ainda segundo a mãe de Ana Caroline, que é conhecida por todos do projeto como Carol, tem gente que até hoje pensa que o projeto incentiva a sexualidade precoce. Daniela nega veementemente, ressaltando que seja na família ou na escola, a sexualidade do jovem está sempre presente, e o que falta mesmo é orientação e diálogo para que as dúvidas diminuam e o jovem se sinta mais seguro, protegido, aprendendo a tomar decisões.
“Carol é uma menina muito feliz, ama o projeto e mudou muita coisa na vida dela. Hoje é defensora do direito das mulheres. Depois do projeto aprendeu a lutar pelo que ela quer, os ideais dela, e quer se formar em psicologia e ser sexóloga. Ela diz que é preciso ter mais sexólogos, isso é muito necessário hoje porque ela fala que o mundo precisa mais de amor um pelo outro”, ressalta Daniela.
A necessidade que Ana Caroline sente, de ter mais jovens e profissionais que multipliquem o amor, por meio do conhecimento sobre a sexualidade e os direitos sexuais e reprodutivos, motivou o trabalho que a Reprolatina começava havia 20 anos.
Nesse tempo a ONG incentivou ações continuadas de prevenção a ISTs, gravidez precoce e outros temas da Educação Integral em Sexualidade, tanto em escolas quanto em centros de saúde e organizações da sociedade civil. Somente pelo projeto Jovens Mobilizadores/as, realizado em Campinas de 2017 até agora, foram capacitados 212 jovens, 81 profissionais das escolas, OSCs e centros de saúde parceiros do projeto, e mais de 17 mil pessoas foram beneficiadas, com as ações de informação, educação e prevenção realizadas pelas equipes capacitadas.
As ações, que promovem a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, alertam ainda para a necessidade de políticas públicas que o façam, promovem o combate à violência de gênero e o bullying. O foco são jovens entre 15 e 24 anos, que ao fim do projeto possam ser protagonistas na expansão dessas ações.
O programa Juventudes
O projeto faz parte do Programa Juventudes, da Fundação FEAC, que em 2017 buscava parcerias para desenvolver um projeto de saúde sexual e reprodutiva entre os jovens. A Reprolatina, reconhecida como um centro colaborador da OMS, Organização Mundial de Saúde e do Fundo de População das Nações Unidas, UNFPA, para a saúde sexual e reprodutiva, apresentou, então, um modelo inovador de ação.
Tatiane Zamai, líder do Programa Juventudes, da FEAC, ressalta que “quando o jovem fala entre pares, ecoa diferente em relação ao adulto, que muitas vezes se considera detentor do saber e atua na repreensão. Quando é o jovem que tem informações e essas informações têm o embasamento, são adequadas, apropriadas, não ficam na informação que ‘eu achei no google’, não fica no que o ‘meu amigo falou’ e sai do senso comum; quando você capacita o jovem, isso tem um eco muito importe”.
Além de entrar em vários ambientes, em 2 anos de projeto, outro resultado fundamental, segundo Tatiane, é trabalhar o tema no PPP, Plano Político Pedagógico das escolas e organizações da sociedade civil, “pra deixar que esse assunto seja tabu. Não adianta fechar os olhos e achar que ele não existe”, ressalta.
Outro ganho para ela foi a elaboração de um Guia prático para trabalhar com as juventudes, lançado em 2017 e atualizado em 2018 e 2019. O Guia “Juventudes e os Direitos Sexuais e Reprodutivos”, disponível em – https://www.feac.org.br/portfolio-items/guia-juventudes-e-os-direitos-sexuais-e-reprodutivos/ traz subsídios para orientação sobre esses direitos, principais políticas públicas e serviços de garantia e defesa. O Guia serviu até mesmo, segundo Zamai, como referência para elaboração do Caderno de Ciências do oitavo ano das escolas estaduais/SP este ano.
Quem quiser ser um jovem mobilizador tem que passar por 32 horas de atividades teóricas, durante quatro dias de capacitação. A intenção é criar um vínculo para que o jovem se comprometa com o projeto.
Em Campinas esse trabalho chega hoje a 10 territórios (entre regiões e bairros) e até 2021 a intenção é que chegue a 14. Para Rodrigo Correia, coordenador do projeto, é importante que cada vez mais pessoas conheçam a metodologia aplicada, porque já é possível demonstrar que ela dá resultado, que pode mudar de fato o presente e o futuro de centenas de jovens e suas famílias.
Para muitos pais ainda inseguros diante de um tema, sempre cercado de polêmicas e tabu, Rodrigo tranquiliza: “As pessoas pensam que ações como estas vão incentivar a vida sexual mais precoce. Muito pelo contrário. Quando o jovem conhece esse assunto de forma ampla, integral e sabe as consequências de seus atos, inclui a vida sexual e reprodutiva no seu projeto de vida, muitos adiam esse momento e se tornam mais seguros para agir com prevenção e responsabilidade”, esclarece.
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