A Terra de cego e o outro
Autora: Clara Rios do Carmo
O que mais tenho ouvido nos últimos meses é “não vamos colocar política no meio disso”, “esse país não vai pra frente por causa de política”, “não vamos deixar a política dividir a família”. Talvez essas pessoas não tenham entendido que política é, justamente, nossa forma de lidar com o outro, é o modo como nos organizamos enquanto sociedade. Política é o que nos faz entender que somos parte de um todo, que a Terra não gira ao nosso redor – embora muitos ainda pensem que ela gira e, outros -ainda, que a Terra é plana.
Quando lembramos que esse outro existe, para além da nossa zona de conforto, passamos a perceber as desigualdades. Claro, não queremos notá-las. Não é nada agradável saber que, enquanto você escolhe seu cobertor e sua série favorita no Netflix, fora do seu condomínio alguém dorme na calçada, muitas vezes sem ter como se aquecer. Não é nada agradável lembrar que enquanto você janta um “spaghetti al pesto”, alguém revira o lixo para encontrar algum resto que sirva de alimento.
Também não é agradável saber que mais um dia se passa e o número de mortes por Covid-19 só cresce no Brasil. E aí manter os olhos abertos fica cada vez mais difícil… dói. Então os fechamos. E criamos bodes expiatórios como a mídia, o governante, o vizinho, para não carregar a tão grande culpa que também é de nossa responsabilidade.
Essa forma de agir – ou de não agir – é sempre política, porque tem consequências diretas na vida de outras pessoas que não necessariamente fazem parte do nosso círculo social mais próximo. Quando escolhemos deixar de olhar, deixamos também de pensar sobre e, então, contribuir para que aquela situação melhore. A partir do momento em que paramos de dar dignidade e nome a João Pedro e George, mais mortes como as deles acontecem e são banalizadas.
Quando vemos profissionais da imprensa serem agredidos e mudamos de canal, mais jornalistas exercem seu trabalho amedrontados. Quando mudamos de assunto quando alguém fala sobre uma questão polêmica, mais fechados na nossa própria bolha ficamos.
Quando aplaudimos de olhos fechados representantes de Estado que demonstram a mais falta de empatia com os mortos pela Covid-19, desrespeito à democracia e aos direitos humanos, além de alusões a movimentos totalitários, racistas e neonazistas, somos, sim, coniventes com todas essas desigualdades.
Minha boca agora pode estar coberta por uma máscara, mas eu não vou fechar os olhos. Não, eu não vou fingir que nada acontece. Em terra de cego, quem tem olho, olha para o outro!
Clara Rios do Carmo é jornalista e professora.